O Jardim Lapena

Inserido ao norte do distrito de São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo, o Lapena conta, atualmente, com aproximadamente 12 mil habitantes distribuídos em uma área de 30 hectares. Sua área é bem delimitada por muros das indústrias do entorno, SABESP ao norte e Nitro Química à leste; pelo Viaduto Jacu-Pêssego à oeste; e pela linha férrea da CPTM a sul, uma das principais vias de acesso ao bairro e que o conecta ao resto do município.

A origem do Jardim Lapena remonta à sua posição estratégica para o escoamento de produção industrial via Rio Tietê, que também foi fonte importante de água para o funcionamento das plantas industriais da região. Por ser um território de várzea do Rio, e portanto, área plana, instalou-se no Lapena, também, a estrutura ferroviária que até hoje se faz presente na região, sendo atualmente a principal via de acesso ao bairro. A dinamização industrial do território aumentou a atratividade de seu entorno, dando início aos primeiros loteamentos que, em documentos oficiais, datam de 1960 (porém, com ocupações já observadas desde o final dos anos 1950).

A pressão habitacional do território é fruto histórico de um loteamento voltado para empregados das indústrias da região que não absorveu toda a demanda por moradia que acompanhou a dinamização econômica da região. A pressão fundiária e ocupação crescente fez com que os espaços residuais (resultantes de loteamentos antigos e resquícios de áreas públicas), cursos d’água e áreas de proteção fossem ocupados ao longo da última década por populações de maior vulnerabilidade socioeconômica, em moradias majoritariamente precárias. Essas ocupações resultaram na região atualmente chamada de Baixo Lapena, caracterizada por um alto nível vulnerabilidade, como moradias em palafitas e sobre o córrego, e condições físicas e demográficas bastante distintas do restante do bairro (Alto e Médio Lapena, as quais resultam de ocupações mais antigas e já bem consolidadas). Por ocuparem regiões extremas do território, moradias do Baixo Lapena têm acesso reduzido à rede de saneamento básico e condições precárias de construção; são, ainda, localizadas em pontos mais distantes das vias de acesso ao território e, portanto, menos integradas ao restante do município. A existência de “dois” Lapena, um mais antigo e planejado e outro irregular e em zonas de risco ambiental, contribui para o aumento do nível de vulnerabilidade e desigualdade do bairro, intensifica conflitos sociais locais e amplia a complexidade dos problemas e das alternativas de solução para o desenvolvimento completo do território.

Já no ano 2000, segundo os dados do Censo, a população do território se aproximava de 5200 pessoas. Dez anos depois, cerca esse número subiu para cerca de 6.780. O crescimento demográfico da região beira os 2,7% ao ano, taxa bastante superior em comparação, por exemplo, com o distrito de São Miguel (0,56%). Como atualização desses números após a onda de ocupações, a Unidade Básica de Saúde (UBS) estima que a população do bairro era de aproximadamente 12 mil pessoas, em 2017.

Esse crescimento intenso nos últimos 20 anos acirrou problemas já existentes de pressão demográfica da região, que por conta de barreiras territoriais (ver Figura 7.1), já não consegue se expandir. Nesse sentido, a formação do Jardim Lapena reflete, de certo modo, o padrão normal de crescimento das periferias, com moradias inapropriadas instaladas em áreas de alto risco ambiental. O fato de o território estar localizado em uma área de curso natural do Rio Tietê o torna especialmente suscetível a catástrofes ligadas a alagamentos, os quais são intensificados pela condição de ocupação mais recente de áreas que eram curso d’água e de proteção.

Como já destacado no Capítulo 3, o Jardim Lapena apresenta diversos problemas tipicamente associados a territórios urbanos vulneráveis, destacando-se a alta desigualdade dentro de um bairro que já tem renda bastante inferior quando comparada com, por exemplo, a média do distrito de São Miguel e com o resto do município de São Paulo. Na tentativa de mudar esse quadro, foram essenciais as diversas ações de apoio ao território do Lapena desenvolvidas não apenas pelo poder público, mas também por diversas organizações sociais –– e, notadamente, pela Fundação Tide Setubal.

Presente no bairro desde 2005, com a instalação do Galpão ZL (antigo Galpão de Cultura e Cidadania), a Fundação Tide Setubal tem atuado em prol do desenvolvimento do Jardim Lapena e somado esforços na luta dos moradores pela expansão dos equipamentos e serviços disponíveis à população, e por melhorias na qualidade dos já existentes. Nesse sentido, a Fundação é um dos principais atores envolvidos em ações de apoio ao bairro e, ao longo de mais de quinze anos na região, expandiu suas atividades, cobrindo diversos temas. Inicialmente, sua atuação possuía maior foco em jovens e crianças e nas áreas de lazer e cultura. Mais recentemente, o Galpão ZL passou a atuar mais intensivamente na agenda de geração de emprego e renda, formação profissional e empreendedorismo, e no apoio socioassistencial. Apesar da diversidade de atividades e projetos liderados e apoiados no território, a presença da Fundação Tide Setubal sempre se assentou em alguns pilares essenciais: o engajamento comunitário e o protagonismo dos moradores em sua mudança e desenvolvimento do território. Nas próximas seções deste Capítulo, a atuação da Fundação Tide Setubal no território do Lapena será descrita em maior detalhe.

A partir das atividades apoiadas pela Fundação Tide Setubal, sempre em conjunto com as organizações de moradores do bairro, muito foi conquistado. A estruturação de um sistema de coleta de lixo porta-a-porta, em 2009, trouxe uma transformação significativa para o ambiente do bairro, além de melhorar as condições sanitárias do território (e, por conseguinte, a saúde da população). Apenas dois anos depois, em 2011, deu-se início às obras da construção de uma Unidade Básica de Saúde com a implantação do programa de Estratégia de Saúde da Família (ESF), bem como um esforço conjunto com os atores do território para a construção de um coletor-tronco que diminuiria, se fosse concluído, o número de enchentes do território (por diminuir a quantidade de resíduos jogados diretamente no córrego). Já em 2013, foram inaugurados os equipamentos de educação infantil e a abertura de acesso à estação de trem São Miguel Paulista, que passou a ser a principal forma de acesso ao bairro, garantindo conectividade do território com a cidade.

Atualmente, o território do Lapena conta com a já mencionada UBS Jardim Lapena, e quatro equipamentos de educação infantil, sendo um Centro Municipal de Educação Infantil (CEMEI) e três Centros de Ensino Infantil (CEI), comumente chamados de “creche.” Dois deles são conquistas de 2013, o CEMEI Jardim Lapena I, ao lado do Galpão ZL, e o CEI Jardim Lapena II, ao lado do conjunto habitacional conhecido como “Mutirão.” Já o CEI Horebe, na Rua Rafael Zimbardi, e o CEI Margarida, na Vila Nair, são conquistas recentes da comunidade. A primeira foi inaugurada em 2020 e a segunda já está pronta, mas ainda sem funcionamento por conta da pandemia da covid-19. Há, ainda, uma escola estadual (Professor Pedro Moreira Matos) que atende alunos do primeiro ao nono ano do ensino fundamental, ensino médio e educação de jovens e adultos (EJA).

Devido à insuficiência de espaços qualificados de lazer no bairro, algumas das infraestruturas existentes nesses equipamentos de educação são apropriadas pelos moradores, para além do uso escolar. Este é o caso das quadras poliesportivas da CEMEI Jardim Lapena e da Escola Estadual Pedro Moreira Matos. A CEMEI Jardim Lapena também possui uma área externa de parquinho infantil, também utilizado aos finais de semana.

O Jardim Lapena também conta com equipamentos não-públicos mas que são muito importantes para a vida no bairro, como é o caso do já citado Galpão ZL, da Fundação Tide Setubal, e, também, do campo de futebol. Administrado pela Associação de Moradores do Jardim Lapena, o campo é a maior área destinada ao lazer no território, com 9.215m². Contudo, dado o seu carácter privado, sua ocupação não é livre, mas restrita às atividades programadas.

O território também conta com alguns outros espaços públicos destinados ao lazer e convivência, além de algumas áreas residuais, mas com potencial de serem aproveitadas para essa finalidade. O Jardim Lapena possui três praças: a Praça do Mutirão, a do Galpão e a Erminda. A praça ao lado do conjunto habitacional “Mutirão” é a segunda maior área de lazer no território depois do campo, com 3.132m². Apesar de ser um espaço grande e promissor, ainda é subutilizado pelos moradores e sofre com problemas de manutenção. O Plano de Bairro do Jardim Lapena, apresentando a seguir, traz propostas para utilização desse espaço, o qual também já possui um projeto arquitetônico elaborado pelo escritório Stuchi & Leite. A Praça do Galpão ZL, fica no mesmo terreno do espaço da Fundação Tide Setubal. Durante a elaboração do Plano de Bairro, a área foi alvo de uma série de atividades com finalidade de ocupação de espaços públicos e de convivência, como reuniões participativas do Colegiado do Jardim Lapena e oficinas formativas. Já a Praça Erminda é vizinha à Escola Estadual Pedro Moreira Matos. Tanto a praça do Galpão ZL como a Praça Erminda foram alvos do projeto de Acupunturas Urbanas, durante o processo de elaboração do Plano de Bairro do Jardim Lapena, o qual contou com um mutirão de limpeza e reforma das praças, e instalação de mobiliários e brinquedos para as crianças. Já em relação aos espaços residuais do território, destaca-se a área cercada e arborizada de aproximadamente 247m², localizada em frente ao conjunto “Mutirão”.

Em relação à oferta de comércio e serviços no território do Jardim Lapena, eles estão majoritariamente concentrados ao longo da Rua Rafael Zimbardi (a mesma da estação da CPTM) contento bancas de frutas, mercearias, bares, açougue, farmácia; e na rua Almiro dos Reis, onde há mercado e barbearia, por exemplo.

O Jardim Lapena também é palco de projetos diversos e conta com a presença e mobilização de organizações da sociedade civil. Essas organizações, por sua vez, atuam em sintonia e cooperação em uma série de iniciativas que buscam melhoria das condições do bairro e do bem-estar de sua população. São exemplos dessas organizações a própria Fundação Tide Setubal, o Colegiado do Jardim Lapena, a Associação dos Moradores do Jardim Lapena e as Guardiãs do bairro, organização que será descrita adiante. Entre as iniciativas do território está o Plano de Bairro do Jardim Lapena, de 2017, o primeiro plano de bairro participativo da cidade de São Paulo, criado como uma peça de planejamento destinado a auxiliar na formulação de soluções amplas para todo o território. O Plano de Bairro propõe alternativas para a ampliação de oferta de serviços e equipamentos urbanos (tais como mobiliário, iluminação pública, soluções de controle de tráfego e caminhabilidade) e espaços públicos (e.g., áreas verdes e de convivência). O Plano ainda inclui ações de limpeza e manejo de resíduos, soluções de microdrenagem e melhoria da qualidade ambiental do território, além de incentivos ao desenvolvimento de atividades econômicas locais.

No Jardim Lapena, o Plano de Bairro foi liderado pelo Colegiado do Jardim Lapena, organização local composta por moradores e instituições atuantes no território. O documento foi apresentado ao poder público municipal e aprovado pelo Conselho Participativo de São Miguel, tendo algumas de suas ações incorporadas às peças de planejamento orçamentário da cidade. A iniciativa contou com apoio direto da Fundação Tide Setubal, e apoio técnico do Centro de Economia e Política da Fundação Getúlio Vargas (CEPESP FGV). O Plano foi desenvolvido de forma totalmente participativa, incluindo discussões colaborativas, proposições e priorização de ações contidas no escopo do instrumento. O processo contou com a presença dos moradores e todos os atores-chave, como lideranças históricas no bairro, ligadas ao esporte e a cultura. Além disso, também engajou a participação de representantes das instituições e equipamentos presentes no território (das creches e escolas, por exemplo), e os mais variados grupos etários. As diversidades socioterritoriais contidas no bairro (entre Alto, Médio e Baixo Lapena) também estiveram presentes.

O processo de construção do Plano de Bairro do Jardim Lapena também contribuiu para o fortalecimento da comunidade, seja por meio da criação de espaços abertos de discussão, ou por meio de atividades diretas de melhoria do bairro, como os já mencionados mutirões de acupunturas urbanas. O reconhecimento da organização comunitária como item central para a conquista de mudanças profundas levou à inserção de objetivos no Plano de Bairro do Jardim Lapena completamente voltados ao capital social da comunidade. Desde o Plano de Bairro, o Colegiado do Jardim Lapena vem promovendo, com apoio da Fundação Tide Setubal, diversas atividades na temática de capital social, incluindo itinerários políticos formativos, pressão por melhorias e ações de engajamento comunitário, além de lançar e fortalecer lideranças. Essas ações são detalhadas nas seções seguintes deste capítulo.

Há, ainda, outros exemplos de iniciativas e organizações engajadas no desenvolvimento amplo do território. É o caso, por exemplo, do projeto Rede Vaga Lume que, instalado no Galpão ZL, promove atividades de intercâmbio cultural, reforço da leitura e oralidade, entre crianças do bairro e comunidades da Amazônia Legal Brasileira. Outra atuação tradicional no bairro é a da Associação de Moradores do Jardim Lapena, que fomenta a inserção das crianças e adolescentes no mundo do esporte (em especial, do futebol). Uma iniciativa mais recente, criada em 2020 durante a pandemia de covid-19, foram as Guardiãs do bairro, a princípio, um braço de apoio do Eixo Acolhe do Galpão ZL, destinado ao atendimento e encaminhamento de famílias para a rede de equipamentos socioassistenciais. As Guardiãs são, atualmente, um grupo de 56 moradoras engajadas no apoio a comunidade, havendo uma representante em cada rua do bairro. As Guardiãs foram centrais para viabilizar o projeto de distribuição de cartão alimentação, durante a pandemia, fornecidos pela Fundação Tide Setubal. Elas atuaram identificando as famílias mais necessitadas e as encaminhando ao serviço do Acolhe. Atualmente, a mobilização do grupo já supera a relação com o Galpão ZL, se configurando como um novo grupo no bairro, com projetos e interesses próprios.

Finalmente, é interessante destacar, ainda, algumas condições contextuais presentes no Jardim Lapena que podem afetar diretamente o sucesso de intervenções urbanas voltadas à população mais vulnerável. A presença de organizações ligadas ao tráfico de drogas e ao crime organizado é um fator que pode influenciar, por exemplo, o sucesso de ações nas áreas de segurança pública, capital social e educação (notadamente, das atividades focadas na redução da evasão escolar). A existência de grupos de moradores com atitudes conflitantes ou contrárias às ações promovidas no território pode ser outra fonte de preocupação. Por exemplo, no caso de atividades voltadas à regularização fundiária e redução de ocupações em áreas de risco, especialmente relevantes para a população do Baixo Lapena, o posicionamento de alguns moradores pode gerar incentivos conflitantes para algumas famílias, dificultando, assim, a implementação de políticas bem-sucedidas de desocupação de áreas de risco.